sábado, 1 de novembro de 2008

A tia do Ru

O maior susto que eu levei na volta pra Úrguis foi conhecer a nova tia do RU. Naquele fim de manhã eu achava estar me encaminhando para mais um almoço normal de um dia normal. A fila era normal, a pressa era normal, as moedinhas contadas no subir das escadas eram normais e a moça do segundo guichê, embora eu nunca a tivesse visto, parecia ser normal. Me aproximei do balcão, entreguei as moedinhas, passei o cartão peguei o troco e o bilhete de suco, tudo isso da forma mais normal, e já me encaminhava normalmente para a catraca quando ouvi, quase às minhas costas, algo um tanto anormal: "obrigada, Judite!", disse ela com um sorriso. Confesso que levei uma fração de segundos para entender o que estava acontecendo. Sorri de volta, meio atordoada e segui adiante pensando que nunca antes, em 5 anos de casa, eu tinha me dado conta de que o meu nome aparece todo o dia junto com a minha foto quando eu passo o cartão no caixa. Sempre apareceu.
Não pude deixar de me perguntar o que tinha acontecido com a moça. Estaria num dia extremamente feliz? Sim, só podia ser isso. Enfim, ela (assim como as outras tias do RU) era paga para cobrar pelos almoços, não para ser simpática. Era inconcebível que sorrisse todos os dias e agradecesse a cada giro da catraca. Mas nos dias que se seguiram comecei a observar que o sorriso imenso não saía nunca do rosto dela. E a vontade que, depois do primeiro almoço, me deu de cair sempre no guichê da moça só para ser bem atendida e poder sorrir de volta para um ser desconhecido, começou a virar uma espécie de receio. Aos poucos notei que, por algum motivo meio incompreensível aquela profusão de felicidade pouco a pouco me deixava constrangida. Enfim, qual era o problema dela? Que tipo de pessoa consegue desprender tanta alegria cobrando almoços de estudantes? Aquilo não podia estar certo!
Até que um dia ela sumiu. Uma menina mais convencional assumiu o lugar e eu pensei, um pouco mais tranqüila, que agora tudo fazia sentido. Uma pessoa tão feliz não agüentaria muito tempo naquele emprego. A moça alegre tinha saído em busca de algo que desse vazão a sua incessável felicidade. E voltei a almoçar normalmente, pagando pras tias normais, em dias normais, quieta com meus normais botões.
Qual não foi minha surpresa quando ontem, chegando perto do balcão, percebo que a moça feliz está de volta. E não, não deixou a felicidade de lado. Pelo contrário: agora, ao lado do seu monitor, ela colocou um plaquinha com o nome recortado. Se chama Viviane. Com os pingos dos Is em forma de coração. Acho que ela também quer que as pessoas que se lembram de agradecer pelo bilhete do suco a chamem pelo nome.
E meu almoço, mais uma vez, não foi tão normal assim. Fiquei tentando descobrir o que há por trás de tanta felicidade. Num desespero por resolver uma questão tão inexplicável, só me ocorriam teorias do estilo livros de auto-ajuda. Talvez fosse paciente de uma doença muito grave, ou acabou de sair de uma grande depressão, ou ainda escapou por um triz de um acidente que poderia ter sido fatal. Sim, tinha que ser isso. Só podia ser isso. Não tinha outra explicação.
Mas enquanto virava a bandeja pra alcançar melhor a sobremesa eu entendi. O que me constragia não era a felicidade da tia do RU. O que me contrangia era o fato de tanta felicidade me constranger.