quarta-feira, 21 de maio de 2008

Dachau

Em 22 de março de 1933, apenas algumas semanas depois de Hitler ter sido nomeado chefe de Estado na Alemanha, a cidade de Dachau abriu as portas fechadas de um campo de concentração para prisioneiros políticos. Construído para "abrigar" 6.000 seres humanos, chegou a ter 32.000 "trabalhadores" simultaneamente. Tendo funcionado por 12 anos, o lugar serviu de modelo para todos os futuros campos de concentração do Terceiro Império.
Em 17 de maio de 2008, cerca de 63 anos depois de o fim da guerra fechar as portas abertas do campo de Dachau, eu fui conhecer o museu que foi erguido naquele espaço. Os pensamentos que resultaram dessa visita continuam embaralhados, e eu acredito que organizá-los em uma ordem lógica não seja algo possível para mim. Mas também acredito precisar registrá-los de alguma forma, e por isso esse post será exatamente isto: um registro talvez meio desconexo dos pensamentos de uma tarde de visita.

O primeiro contato que eu lembro de ter tido com a idéia da II Guerra foi ainda no colégio primário. A irmã que cuidava das crianças no recreio era uma alemã emigrada ainda adolescente, depois de ter trabalhando na Cruz Vermelha no auge dos anos difíceis. E um dia ela nos deu uma palestra. Falava de como era triste, das pessoas feridas e do medo. E eu aprendi que Guerra = coisa triste.
Depois vieram as aulas de história do Segundo Grau. Além de triste a guerra passou também a ser números, fatos, fotos e nomes. Aprendemos o nome de um cara chamado Hitler e aprendemos que muitas pessoas ficaram sem nome.
Mais ou menos pela mesma época o mundo começou a sair dos limites escolares e eu comecei a ver filmes. Muitos filmes. Impressionante a quantidade deles que gosta de falar sobre Guerras. Dá pra entender, guerras são tristes e fazer chorar é bom pra bilheteria. De Chaplin a Polanski, as versões cinematográficas do holocausto são as mais variadas que a imaginação pode permitir. Mas o que todos eles tem em comum são as lágrimas no final. Ou no meio. Ou já no começo até. "O Pianista" me levou aos soluços. E foi exatamente quando eu, ao pensar sobre esta cronologia dos meus conhecimentos, cheguei na parte dos filmes, que me dei conta de que pisar em Dachau era algo completamente diferente dos contatos que eu tinha tido até então. No cinema eu soluçava. Andando por entre aquelas paredes as minhas lágrimas tornaram-se incapazes de se desprenderem dos olhos. Se eu fosse inventar uma palavra para aquela sensação, seria algo entre "choque" e "incompreensão". Talvez "não-assimilação".
Seja pelos relatos de uma ex-voluntária da Cruz Vermelha, pelas fotos, livros ou filmes, até então a idéia de Guerra (seja a Segunda, a Primeira, a no Iraque ou a dos Farrapos) era uma coisa meio distante, meio literária. Eu tinha aprendido que tudo isso aconteceu de verdade. Mas até agora elas tinham acontecido lááááá. Lá na Alemanha, lá no passado, lá com outras pessoas, com pessoas sem nome e sem rosto. Em Dachau as coisas aconteceram aqui. Aqui neste forno dezenas de milhares do que sobrou de vidas humanas foram incineradas. Aqui neste pátio, nesta terra que agora toca os meus pés, outros tantos desmaiaram de fome e cansaço, reduzidos a esqueletos cobertos de pele. Aqui nesta torre ficavam os vigias que atendiam as preces dos prisioneiros que simulavam uma tentativa de fuga e cruzavam os limites do campo só para se colocarem no alvo de balas e darem um fim ao seu sofrimento. E este cartão postal aqui, com os votos de feliz Natal a uma mãe que ficou distante, e uma fingida alegria para tranquilizar, foir escrita por um ser humano de verdade. Não uma foto sem nome, não um ator que sabe fazer cara de quem sofre. Uma pessoa chamada Xaver.
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Na entrada do campo os portões permanecem fechados para que os visitantes possam ver as palavras que continuam gravadas, como foram para receber os prisioneiros que lá chegavam: "Arbeit macht frei": "o trabalho liberta". Eu ainda me pergunto se isto foi um sinal de cinismo ou de insanidade. Independente disto, era um lema. Era o resumo do que fez as coisas chegarem onde chegaram: era o centro de uma propaganda.
A primeira sessão do museu se dedica a explicar como foi possível que Hitler chegasse a ser nomeado chefe de estado. A sala, cheia de dados históricos e cartazes de campanha política dão uma idéia. Mas tem algo que eu não encontrei no meio às exposições: o fato de que o homem, simplesmente, sabia falar.
Neste semestre eu tenho duas disciplinas que me puseram em contato com a propaganda nazista. A primeira me levou a ver alguns filmes do partido, hoje facilmente acessíveis no youtube. Todos bem planejados ao extremo, é claro, mas uma das poucas coisas não tão forjadas assim que se pode ver neles é a reação das pessoas frente ao auto-denominado guia da nação. Este sim era um sujeito popular. As pessoas tinham a ele, literalmente, como a um salvador.
E como? Aí chegamos à segunda disciplina do semestre, que versa sobre retórica. Nesta estudamos os escritos de Hitler como os de Platão ou Aristóteles: se temos que admitir uma coisa, é que ele realmente sabia o que fazia. Nos poucos trechos de "Mein Kampf" que eu tive oportunidade de ler (aqui a venda do livro é proibida, a não ser para fins científicos), fiquei abismada com a cientificidade com que ele trata a comunicação. Até a hora do dia, segundo ele, pode ser usada para manipular a assimilação de um discurso.
E daí veio o ponto que desde o começo dessas disciplinas vem perambulando pela minha cabeça de aspirante a comunicadora. Um sujeito desses, com essa inteligência e essa insanidade mental, e com uma coisa chamada "mídia" na mão. Se já chegou no lugar onde vimos nos tempos em que "mídia" significava basicamente cinema e rádio, o que pode acontecer em tempos que qualquer pé-rapado da fabico tem blógue e orkut pra espalhar o que tem na cabeça? Tá que "qualquer pé-rapado da fabico" não tem necessariamente a metade da capacidade retórica que tinha Hitler. Mas sei lá.
De repente, andando por Dachau, uma frase ficava repetindo nos meus ouvidos e não tinha jeito de sair. "Tudo começou com propaganda".
"O trabalho liberta". O slogan continua lá. Até hoje.
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Confesso que até pisar em Dachau eu achava meio exagerado esse medo todo de se falar sobre o assunto, que paira sobre a Alemanha. Hitler aqui é praticamente um Voldemort, é "aquele-que-não-deve-ser-nomeado". O livro dele é proibido por lei. E eu concordava bastante com a filosofia "melhor seria falar mesmo sobre o assunto pra matar de vez esse fantasma". Mas depois de algumas horas lá dentro eu entendi melhor as pessoas que dizem que falar disso é (ainda) mais difícil do que possa parecer.